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A desconsideração da personalidade jurídica e o atual processo do trabalho#

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Em 18 de março de 2016 entrou em vigor a Lei 13.105/15, que regulamentou o novo Código de Processo Civil e cujos efeitos serão sentidos no direito processual do trabalho, haja vista a previsão de aplicação subsidiária e supletiva de suas orientações neste ramo específico.
Com o intuito de organizar o efeito irradiador do novel diploma no direito processual do trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho, em 15 de março de 2016, publicou a Instrução Normativa 39/2016 que cuida dos institutos que serão aplicados na esfera trabalhista, dentre os quais, destaca-se o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos artigos 133 a 137 do novo CPC.
Logo e sem pretensão de exaurir o tema, as reflexões que serão apresentadas a seguir se prestam a estímulo para o aprimoramento das discussões que serão travadas, pois sua aplicação, tal como atualmente conformado, não encontrava esteio nos princípios e na jurisprudência trabalhista.
Antes de discutir as modificações inauguradas pelo novo Código de Processo Civil, contudo, é importante rememorar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (ou disregard of legal entity) é oriundo do direito anglo-saxão [2] e começou a ser difundido pelo professor Rubens Requião nos idos de 1960.
A disciplina legal se deu em 1919 por meio da Lei 3.708/19, que regulamentou a sociedade por ações e por cotas, atribuindo responsabilidade solidária aos sócios pelos atos praticados com abuso de poder e contrários à legislação.
No ano de 1966 o Código Tributário Nacional, à reboque da legislação que lhe precedia, disciplinou a responsabilidade dos gestores das empresas por atos praticados com excesso de poder, infração à lei, ao contrato social ou estatuto. É o que se depreende da redação do artigo 135, da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966.
As relações de direito privado não ficaram marginalizadas de sua irradiação, posto que o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor [3] também contemplaram a possibilidade de invasão do patrimônio pessoal dos sócios nas hipóteses de abuso ou excesso de direito, infração da lei, má administração ou confusão patrimonial, tudo, na forma dos seus artigos 50 e 28, respectivamente.
A par dessa regulamentação, desenvolveram-se duas teorias acerca do instituto estudado: a Teoria Maior, que condiciona a afetação do patrimônio dos sócios quando houver prática de atos com abuso de poder, desvio de finalidade, confusão patrimonial ou má-fé e; a Teoria Menor, em que há a desconsideração da personalidade jurídica pela simples impontualidade ou inadimplemento da obrigação.
A jurisprudência trabalhista encampou a segunda teoria, o que dispensa maiores digressões teóricas, todavia, é de bom alvitre registrar que tal se deu com arrimo na hipossuficiência do trabalhador que, em tese, lhe causaria dificuldade na demonstração, em juízo, dos requisitos estabelecidos pela legislação quanto à exigência de má-fé do administrador, tudo, aliado ao caráter alimentar do crédito discutido.
Não fosse suficiente, o cumprimento de sentença no direito processual do trabalho está disciplinado pelos artigos 876 a 892, da CLT e, como não poderia deixar de ser, é informado por princípios que lhe imprimem celeridade, simplicidade e efetividade do procedimento, primando pela agilidade da execução com máximo resultado e o menor dispêndio de atos processuais.
Assim sendo, o incidente aqui tratado encontrar-se-ia em rota de colisão com os princípios que informam a fase de execução prevista na Consolidação das Leis do Trabalho. Isso porque, o artigo 134 do novo Digesto Processual determina autuação apartada do incidente com sobrestamento do feito até sua solução, questões que se antagonizam com a duração razoável do processo do trabalho, em especial porque incidentes que nele se instauram são resolvidos por decisões sem efeito suspensivo, admitida a insurgência, apenas e tão somente, nas hipóteses previstas no artigo 897, alínea "a”, da CLT.
A questão tormentosa fica ainda mais acirrada quando o operador do direito se depara com o parágrafo 4º, do já mencionado artigo 134, vez que ele prevê a obrigatoriedade de demonstração dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da personalidade jurídica, ao passo que o direito processual do trabalho atribui responsabilidade aos sócios pela mera impontualidade ou inadimplemento da sociedade no cumprimento das obrigações reconhecidas por decisão judicial, afastando, via de consequência, os demais requisitos legais.
Do cenário até aqui exposto, é possível inferir a nítida postergação do contraditório e da ampla defesa nos incidentes de desconsideração da personalidade jurídica que tramitam na esfera trabalhista, o que não se coaduna com o novel regramento, a teor do artigo 135 do NCPC, pois este concede prazo de 15 dias para a resposta do réu.
A aplicação do incidente em estudo, tal como estabelecido no regramento inaugurado pela Lei n.º 13.105/15, ao ser transportado para o direito processual do trabalho, em que pese atritar-se com os princípios próprios deste ramo especializado, privilegia e vai ao encontro do princípio do devido processo legal constitucional [4], por meio do qual admite-se, nas palavras de Cássio Scarpinella Bueno, "a efetividade do direito material pelo processo”, colmatando-se nele o contraditório substancial expresso nos artigos 9º e 10º, do novo CPC.
A afirmação também encontra respaldo na exposição de motivos do novo Código, pois há "necessidade de que fique evidente a harmonia da lei ordinária em relação à Constituição Federal da República”, fazendo com que se incluíssem no Código, expressamente, princípios constitucionais na sua versão processual. Em outras palavras, as regras foram concebidas dando concreção a princípios que preveem um procedimento com contraditório e produção de provas, prévio à decisão que desconsidera da pessoa jurídica, em sua versão tradicional, ou às avessas.
Os defensores da inaplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no processo do trabalho o fazem sob o fundamento de burocratização da Justiça do Trabalho, não sendo possível, a partir de agora, o direcionamento automático dos atos patrimoniais constritivos na pessoa dos sócios (inteligência dos artigos 790 e 795, ambos do novo CPC), questões que prejudicam a economia, a celeridade e, principalmente, a efetividade do processo.
Com estes argumentos não se pode concordar pacificamente, pois ao disciplinar a aplicação da sistemática processual estabelecida pelos artigos 133 a 137 do NCPC, o Tribunal Superior do Trabalho vinculou seu processamento à prévia avaliação do juízo de primeira instância, a fim de garantir-lhe o fiel e adequado exercício do poder geral de cautela previsto nos artigos 297 e 300, ambos do novo CPC.
Ratificando a assertiva está o artigo 6º, §2º da Instrução Normativa n.º 39/2016 que admite a concessão da tutela de urgência de natureza cautelar prevista no artigo 301 do novo Código de Processo Civil e que poderá se dar mediante arresto, sequestro ou arrolamento de bens, possibilitando, dessa forma, a indisponibilização de bens até que o incidente seja definitivamente julgado.
O cenário jurídico que se conforma doravante encontra-se situado em zona gris, todavia e, consoante enfrentamento da questão pelo Tribunal Superior do Trabalho, a quem incumbe a interpretação e a uniformização das normas que regulam o direito e o processo do trabalho, permite-se concluir que o incidente não causa frustração ou entrave, na medida em que inalteradas a legalidade e a legitimidade judicial na prática de atos de indisponibilização patrimonial.
Com a postura adotada, garante-se a profícua cognição exauriente das decisões prolatadas na fase de cumprimento ou execução de sentença, extirpando do mundo jurídico e de toda a sociedade, a incerteza e a insegurança jurídica que se reflete em pronunciamentos rasos apegados em presunções desprovidas de comprovação efetiva, circunstância que, a médio e longo prazo, contribuem para o atraso na pacificação do conflito, pois é certo que estimulam a interposição de recursos e a litigiosidade [5].
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[1] Segundo o artigo 15, do novo Código de Processo Civil, na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
[2] Historicamente, conforme lição dos mestres Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, autores de Direito Civil, Teoria Geral, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica remonta ao ano de 1809, no caso Bank of United States v. Deveaux, quando o juiz Marshall, da Suprema Corte Americana, considerando que a Constituição norte-americana limita o alcance da jurisdição federal às causas entre "cidadãos de diferentes estados”, manteve a jurisdição federal sobre as corporations, o que significa que o juiz Marshall, pela primeira vez, desconsiderou a personalidade jurídica da sociedade para fixar a competência das cortes federais, sob o argumento de que a ação não se tratava da sociedade em si, mas sim dos sócios contendores.
Contudo, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica ganhou o cenário mundial com o caso Salomon v. Salomon & CO. Ltd., julgado em 1897 pela House of Lords, na Inglaterra, com relatoria do Lord Macnaughten. O caso Salomon v. Salomon & CO. Ltd. versava sobre a situação de um comerciante britânico que fundou uma nova pessoa jurídica, tendo seu quadro societário composto por ele mesmo, sua esposa e seus filhos, reservando para si 20.000 ações, enquanto que os demais sócios detinham apenas uma ação cada um. Ressalte-se que Aaron Salomon integralizou suas 20.000 cotas por meio do seu estabelecimento comercial, no qual já exercia a mercancia sob a forma de firma individual, sendo certo que neste caso, embora tenha sido evidenciada a fraude perpetrada por Aaron Salomon, os credores de sua firma individual viram a garantia patrimonial prejudicada, em face do esvaziamento de seu patrimônio e em prol da nova pessoa jurídica fundada com sua esposa e filhos.
Dentro desta perspectiva, muito embora tenha sido evidenciada a fraude cometida Aaron Salomon, a House of Lords reconheceu a diferenciação patrimonial entre a companhia e os sócios, não identificando nenhum vício na constituição da nova empresa, razão pela qual, não prosperou, nesta oportunidade, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
[3] Alguns autores situam o direito do consumidor na seara privada, por tratar de relações travadas entre particulares (consumidor e fornecedor), portanto não havendo interesse público imediato em tais relações. Por sua vez, em razão da constante intervenção estatal nas relações de consumo, para outros, prepondera o interesse público imediato na tutela do consumidor.
Há uma visão moderna dos autores, segundo a qual o direito do Consumidor "não se encaixa em nenhum desses dois ramos que, assim, vê surgir uma nova categoria de direitos: os Direitos Sociais, baseados no conceito de força maior social como princípio equilibrador dos riscos sociais” (RÊGO, Werson. O Código de Defesa do Consumidor: aspectos doutrinários e jurisprudenciais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 2).
[4] O processo civil atual constitucionalizou-se. Admite-se um modelo constitucional do processo, expressão inspirada na obra de Italo Andolina e Giuseppe Vignera, Il modello costituzionale del processo civile italiano: corso di lezioni (Turim, Giapicchelli, 1990). O processo há de ser examinado, estudado e compreendido à luz da Constituição e de modo a dar o maior rendimento possível aos seus princípios fundamentais. (Exposição de Motivos do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, Brasília, 2010, p. 15), disponível em http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf, acesso em 22.03.2016, às 16h.
[5] CAMBI, Eduardo. Jurisprudência Lotérica. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, ano 90, v. 786, p. 108-128, abr. 2001.
Fonte: JOTA, por Carlos Eduardo Morais e Viviane Scrivani, 27.03.2016

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